terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Palavras destruídas


A névoa branca encobria as luzes de natal e deixava o fim de tarde com o aspecto da derradeira hora da noite. O frio congelava os ossos quase impedindo os transeuntes de locomoverem-se. Os joelhos de Johnantan ardiam em dor, mas caminhar era necessário. Ele tinha um propósito, um ponto de chegada que prometia acalentar seus pensamentos. No caminho, as calçadas úmidas e rachadas tornavam-se obstáculos insistentes em derrubar os fracos corpos que se assemelhavam a zumbis a beira de um apocalipse.


Após tropeços Johnantan avistou um prédio ainda turvo ao longe. Era alto e de um cinza antigo e sem brilho que, nas extremidades adornadas com gárgulas assustadoramente esculpidas, se tornava mais escuro, quase negro. No topo da torre principal, um vitral quebrado deixava ainda intacto o rosto de um homem taciturno, curvado sobre um livro à cabeceira de uma escrivaninha como se o amigo de grossa capa fosse o único permitido a ultrapassar a introspecção de seus pensamentos. "Baudelaire" - pensou ele. Sim, Charles Baudelaire com um enorme buraco no meio da cabeça calva.


Abaixo, a gigantesca porta de madeira afugentava forasteiros que não entendessem o valor do que ela resguardava. Apesar da aparência de algum lugar que facilmente poderia ter sido arquitetado por Bram Stoker, aquele prédio, em seu gélido invólucro, oferecia abrigo a Johnantan.


De dentro do casaco marrom, amarelado pelo tempo que ficou guardado durante o verão, ele tirou a chave. Maior do que as comuns, do que aquelas que ele mesmo carregava e perteciam ao seu apartamento. Era trabalhada com rococós, feita de metal preto fosco, perfeita para a fechadura da pesada porta. Uma vez dentro, o frio foi embora como se fosse afugentado pelo espírito de algum curumim de cabeleira flamejante.


A iluminação escassa foi reforçada pela lamparina acesa. E assim, dispondo-a perto da face, pôde contemplar o tesouro mais precioso que o Baudelaire depredado guardava dia após dia: a maior coleção de livros que aquela cidade vira.


A biblioteca municipal estava há muito abandonada. Não sabia se pela aparência tenebrosa, pelo descuido com os livros, ou se a população preferia lê-los online em seus e-books modernos. O fato é que estava a mercê das traças. Estas detruíam diariamente pelo menos dez palavras de cada publicação que outrora levara alguém em uma viagem por suas páginas. Dezenas de estantes abrigavam milhares de clássicos abandonados.


Johnantan, o antigo bibliotecário, gostava de passar as noites ali, lendo histórias repletas de aventuras e lendo, principalmente, as dedicatórias no início de cada exemplar doado. Em um deles, uma em especial era lida todos os dias:


"Que as brumas lhe guiem até este santuário nas noites de frio. Aqui está todo o calor que sua alma precisa".



W.A.M.


Um comentário:

Anônimo disse...

Fantástico!