segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Si


A plenitude do mundo não era bastante, ele queria mais. Mais de si. Buscou por tanto tempo o horizonte a frente e esqueceu de ampliar as fronteiras internas. Tinha tudo que queria, mas não sabia o que queria. Não sabia nem mesmo quem o queria.

Em meio a atropelos e visisitudes resolveu estancar. Parou de correr atrás do incerto que nem ao menos sabia o nome enquanto ainda era jovem e bonito. Voltou-se para dentro.


Os amigos o chamavam por adjetivos pouco atraentes, imaginavam estar perdendo o amigo simplesmente pela falta de companhia. Não fariam falta mais tarde. Era imprescindível um tempo consigo mesmo.


Um momento de introspecção. Não, de auto-conhecimento. Uma fase pela qual apenas os aspirantes a sábios passam; e aproveitam; e sofrem.

Sofrimento necessário para adequar pensamentos adversativos à realidade pungente.
Se voltou para dentro.

Não havia certezas de conhecer a si mesmo ou de encontrar caminhos, mas o certo é que tentou. Só ele poderia saber a dor e a felicidade de ser quem é.



W.A.M.

sábado, 29 de janeiro de 2011

Pandora

Há momentos nos quais não se pode preencher um vazio. Principalmente aquele que nunca foi preenchido. E a culpa é sua.
Já faz tempo que você me trancou em uma caixa de piadas vazias. Em uma capa de sarcasmos e defesas invisíveis que remanescem naturalmente. Sonhar e amar foi meu único pecado.
Você nem se lembra mais como é buscar um remédio para esse vazio. Está bem com o silêncio. Prefere mesmo o nada oferecido por outrem. Busca esse nada e se sente bem.
Mas no fim do dia, sempre faltará algo. Eu continuo aqui. Só você pode libertar-me.
Quando a solidão der espaço ao aconchego, me procure dentro da caixa. Ainda estou lá.

Ass.: Você.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Infância adormecida


O dia de trabalho foi pesado. Uma correria sem fim em meio a um trânsito que não colaborava. Mesmo assim encontrei um tempo na minha agenda de reclamações para olhar pela janela do carro.

Lá embaixo, pouco além da estrada, crianças jogavam futebol. Alheios às irritantes buzinas e aos esbravejadores adultos, amargos adultos que passavam ao lado. Um menino gritava com o outro apontando insistentemente para uma marca imaginária de pênalti na grama que se esgueirava em meio a terra. Era sua única preocupação.

Nem mesmo os pés descalços no chão cheio de buracos e lama irritava aqueles garotos que só queriam brincar em um início de noite de uma quinta-feira. Se eles soubessem o que perderão em menos de 10 anos teriam deixado até mesmo o pênalti de lado.

Em pouco tempo, os moleques virarão rapazes. Virá o vestibular, a escolha da profissão de uma vida, o primeiro trabalho, garotas partirão seus corações, amargurados farão o mesmo a outras, os seus carros serão mais números em meio a uma superlotação de um trânsito ainda mais caótico.

Aquele pênalti representava um bobo problema em meio a beleza da infância que se perderia entre dilemas e amarguras. Fico me perguntando o que eles fariam e o soubessem. Um dia fui uma menina inocente e cheia de sonhos, meu maior problema era chegar em tempo para formar o time de vôlei na escola. Nunca percebi que os lugares que almejaria ocupar mais tarde me trariam desafios maiores.

Semana passada encontrei um fio de cabelo branco em meio à minha ruiva juventude. Ele poderia ter sido adiado não fosse aquele bendito jogo de vôlei. Agora eles multiplicar-se-ão a cada buzina e a cada vez que eu vir crianças brincado descalças e não puder fazer o mesmo.


W.A.M.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Orfã em um cemitério de livros esquecidos



Ontem fiquei orfã. Não é a primeira vez. Já perdi as contas das vezes em me senti desprotegida, furtada desse amor paternal. Ontem fiquei orfã de um livro.

Quando leio, busco algo mais do que um mero passatempo. Busco proteção naquele cheirinho gostoso de novo que, para mim, assemelha-se a um abraço de mãe. Ao ler me torno personagem. Já fui noiva do Drácula, me perdi em um país das maravilhas, soltei pipas no oriente, caminhei na Alemanha em pleno Holocausto e fui uma menina que roubava livros. Investiguei assassinatos em cidades americanas, visitei o Louvre, fui guerrilheira em Cuba. Na terra média me senti em casa e em barcelona, fui assassinada. No fim de cada jornada, os perdi e me perdi.

O sentimento é de perda e os danos irreparáveis. Já refiz alguns dos mesmos caminhos, mas nada se compara ao primeiro toque nas páginas imaculadas, ao primeiro contato com pessoas que, por dias, viram família. Família do tipo acolhedora que nunca reclama, mas abre os braços e produz palavras de conforto sempre que é preciso.

Machado de Assis, Oscar Wilde, Neil Gaiman, Stieg Larsson, Nelson Rodrigues, J.R.R. Tolkien, Truman Capote... pais que amei. Marion Zimmer Bradley, Clarice Lispector, J.K.Rowling, Raquel de Queiroz... mães que me acolheram.

Eles, entre tantos outros, se foram. Voltaram em outros enredos, mas no fim sempre me deixam. Desolada, inúmeras vezes em pranto, marco alguns momentos do meu caminho com gotas de lágrimas que se espremem entre palavras e afagos.

Estou orfã. Dessa vez de Zafón. Chorei com Miguel Moliner, me identifiquei com Daniel Sempere e Nuria Monfort, aprendi a amar Fermín Romero de Torres mesmo que fosse em uma Sombra do Vento.

Estou de luto que logo cessará, pois já tenho um encontro marcado com Larsson onde espero me sentir uma menina que brinca com fogo. Mesmo assim a Alemanha de Zusak ou mesmo a floresta de Sherwood, de Barie, nunca serão deixados de lado. Eles estarão em uma prateleria reservda para mim no cemitério dos livros esquecidos que me foi apresentado por Zafón.

Aprendi com um deles que alguém só morre quando é esquecido. Eu estou orfã, mas de pais imortais.

W.A.M.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Ponto de vista



Era um dia cinza. Gotas serpenteavam pelo vidro do carro lavando as mensagens empoeiradas que as crianças deixaram mais cedo. Fascinado pelo clima ameno, quase frio, que muito o lembrava Londres, Henrique dava uma volta pela parte nobre da cidade onde se concentrava seu mundo.

Com o pé fundo no acelerador distanciava-se de casa em direção a de sua namorada mal percebendo que deixava pelo caminho rastros de transeuntes mais ensopados do que gostariam estar. A única preocupação era comer o brigadeiro que sua 12ª namorada havia prometido e mostrar-lhe os tênis que trouxera da última viagem à França.
Como adorava aquela chuva.

Era uma dia cinza. Gotas serpenteavam pelo vidro do carro lavando as mensagens empoieradas que as crianças deixaram mais cedo. Zé não notou. Os fios de chuva misturavam-se ao sal de suas lágrimas enquanto ele se segurava no topo daquele automóvel na periferia da cidade.

Zé fora arrancado da cama ainda de madrugada com os gritos desesperados dos filhos. A parede de seu casebre cedera e ali mesmo perdera parte de seu coração. O caçula se foi. Não pôde fazer muito, se pôs logo a nadar para salvar a mais velha, mas não adiantou.

Mais tarde, esperando o resgate, só conseguia pensar na ruína do que construíra para dar o mínimo conforto aos filhos e no trabalho que provavelmente já havia perdido. Não precisaria mais de nada daquilo. Não tinha mais filhos, só lhe restava a vida. A vida e a chuva.
Como detestava aquela chuva.

W.A.M.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

No cabo da enchada


O cabo da enchada calejava as mãos e o sol acentuava as marcas de expressão que ornavam-lhe a testa. Era necessário. Ao final de cada dia tinha que levar o sustento para casa. Não era grande coisa. Pequena, de taipa, com janela e porta de madeira e os fundos levavam a um pequeno terreiro que abrigava as magras galinhas. O saldo daquele dia não foi o necessário para alimentar a todos. Apanhou com o chicote dos jumentos. Antes dos 25 seria o mais velho de uma família de 16 irmãos e, naquele ano, com apenas 8, não podia agradar o patriarca da família e levava as marcas da desaprovação consigo, fincadas pelo corpo.

Aos 17 fugiu de casa. A rebeldia da adolescência não foi o estopim, mas sim a sede de aprender. O rapaz queria terminar os estudos e partiu sem rumo deixando a família que tanto amava para trás e as pilhas de livros que, sem ele, serviriam apenas como peso para porta naquela casa de semianalfabetos. Às vezes ele pensava não pertencer àquela família não fosse o enorme amor que transbordava em seu peito por todos aqueles pirralhos e por seus pais que não aguentou ver separados.

A vida na cidade foi difícil. Moradia apenas de casa em casa dos amigos que fazia nos bares. Aprendeu a fumar para enganar o frio e a beber para enganar a dor da alma. Foi em um desses bares, ao comprar o velho cigarro, que conheceu a bela loira de olhos verdes que tanto lembrava sua mãe.

O namoro não tardou a começar e, com a ajuda dos pais da garota - quase seus pais também - terminou os estudos e fez um curso de ciências contábeis. Não era o bastante. O rapaz era um gênio para os números, mas o que amava mesmo eram as letras. As letras e a moça de pequenos olhos verdes.

Fugiu de novo. Dessa vez para casar longe da pompa que os eventos da época pediam. Àquela altura tinha um emprego estável e mandava dinheiro para pelo menos 7 de seus 16 irmãos. Foi traído pelo coração. Os irmãos o usavam como uma marionete. Antes do primeiro ano de casamento ele já era frio, endurecido pela enchada e pelas traições. Até o dia que conheceu outra mulher. Uma pequena bola de neve com grandes olhos verdes e cabelos negros.

Nunca quisera filhos e se viessem, teriam de ser homens. Doce engano que esvaiu-se diante da pequena. A amou como nunca amou ninguém, mas o coração tem caminhos que prega peças no próprio destino.

Quando a criança tinha apenas um ano, ele foi despedido e, a partir de então, o homem que tanto primara por sua educação e que tanto gostava de trabalhar, se viu sem chão. Nunca pensou sentir falta da roça...

Os anos passavam e os únicos empregos que ele, com idade avançada para o mercado de trabalho, conseguia eram escravos, tortuosos para um homem maduro. O álcool que entrou em sua vida como um passatempo, virou o melhor amigo. O único amigo.

Em casa ele e a mulher viraram estranhos sob o mesmo teto e a criança foi culpada pela mente fria daquele homem. Envelhecido, cansado, uma pedra de gelo, ninguém consguia suportar mais que 10 minutos em sua presença. A cada dia a vida o deixava mais só e menos feliz.

Distanciou-se da filha. Não saíam mais palavras doces de seus lábios secos e os abraços... nem lembrava a sensação de envolver os braços em alguém. A vida não fora fácil e o tempo o castigou. Pensava que felicidade era um adorno que os ricos compravam facilmente, mas que era impossível consegui-la de graça.

Até que a viu. A criança cresceu com sede por leitura, a mesma inerente a ele, e ávida por saber. Uma vontade congratulada com um canudo conseguido com o esforço que ele nem lembrava existir.

Não conseguiu chorar, já não mais podia, mas naquele momento sentiu a maior felicidade do mundo. Enfim, ele havia feito algo certo.

W.A.M.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Sem Vagas

Inerte. Uma estátua de mármore fria e dura. Mal parecia a mulher que os outros a imaginavam ser. Assim ela permaneceu, sem forças, não conseguia se mover.
Pela face pálida, lágrimas rolavam sem som, sem aroma, a deixando cansada do gosto salgado que banhava os lábios. Nem sabia porque chorava.
A TV ligada quebrava o som do vento sorrateiro que espiava pela porta e lentamente acariciava- lhe a pele. Ela não sentia, nada sentia. .
Certa vez lhe disseram que seria fácil, mas estava convencida, seu coração não tinha espaço para mais ninguém, ele já estava totalmente preenchido por ela mesma - apesar da inutilização da vaga.
Estava trancado, lacrado com uma placa alertando o perigo aos forasteiros. Ela não sentia mais nada e só se deu conta quando tentou sentir. Já era tarde.

W.A.M.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

O presidente dos povos

Deodoro, Floriano, Prudente, Campos Salles, Rodrigues Alves, Afonso Pena, Nilo Peçanha, Hermes da Fonseca, Wenceslau Brás, Epitacio Pessoa, Artur Bernardes, Washington Luiz, Getulio Vargas, Gaspar Dutra, Getulio Vargas, Café Filho, Juscelino, Janio Quadros, João Goulart, Castelo Branco, Costa e Silva, Medici, Ernesto Geisel, João Figueiredo, José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco, FHC e finalmente Luiz Inacio Lula da Silva.




Dos 28 homens que já presidiram a República Federativa do Brasil apenas três chegaram ao patamar de mitos: Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek de Oliveira e Luis Inácio Lula da Silva.

O primeiro, o "pai do povo", transformou os trabalhadores em cidadãos com direitos [memo que essa medida tenha sido tomada para afastar a crise de superprodução e não exatamente pelos trabalhadores]. O segundo fez o país crescer 50 anos em 5 e nos presenteou com Brasília. O terceiro mostrou-se um segundo "pai do povo".

Nunca os grandes empresários investiram tanto e a classe média ganhou tantos membros emergentes. A dívida externa foi paga, o PIB teve seu maior crescimento, nunca um presidente teve tamanha empatia e falou direto nos olhos do povo - quem não lembra do primeiro dia de trabalho de Lula, há 8 anos, parando para cumprimentar o povo antes de subir a rampa.

O presidente operário tem tudo para superar seus precedentes. Getúlio ficou manchado por um populismo forçado e pela ditadura implantada no Estado Novo. Juscelino teve o governo manchado pela inflação provocada pela construção de Brasília.

Escândalos, mensalões, nada atingiu a reputação do presidente que disse não à ONU e foi considerado por uma revista americana o maior líder mundial. Os números são favoráveis a Lula. Ele terminou o mandato com 87% da aprovação popular. O maior índice da historia superando inclusive o mito Nelson Mandela (84%) e eu não creio ser necessário dizer o que o primeiro presidente negro da África e seu movimento antiapartheid fizeram por aquele continente.

Getúlio teve que sair da vida para entrar na história. Juscelino sofreu um acidente de carro de origens duvidosas para provocar comoção nacional. Luís Inácio simplesmente entregou a faixa à primeira presidente mulher do país (eleita por mérito dele) e tem tudo para viver uma longa vida assistindo de camarote o rumo que levará o novo país que ele ajudou a construir.

Lula viverá até seu último dia sendo lembrado e será imortalizado após sua morte. Ele não precisou morrer para virar o maior mito que o Brasil já teve e o maior líder da história mundial.
W.A.M.