terça-feira, 25 de maio de 2010

A vida em um embrulho




Os médicos o haviam esquecido lá, mas ele era obediente, mesmo com a idade avançada tinha noção do perigo. Não levantou sequer por um minuto.

No colo uma trouxa de pano bem amarrada nas pontas. Chegara lá já fazia algum tempo, mas nunca deixava aquele embrulho sozinho. O segurava com os braços sôfregos para garantir que não caísse dos joelhos castigados.

No rosto uma expressão de conformação. Mas disso ele não sabia, nunca tivera espelhos em casa. Nos pés as sandálias de dedo feitas a mão quando ainda conseguia empunhar uma ferramenta. No pescoço, o catéter fazia questão de mostrar a todos os transeuntes que aquele homem sofria.

Do lado de fora das grades, a vida acontecia. Pessoas seguiam seu rumo onde só havia o relógio a frente. Ninguém notava o homem do lado de dentro da grade, sentado em um banco de praça. As costas reclamavam, mas ele aguentara coisas piores.

Em volta do pulso, o terço de contas azuis que costumava carregar no pescoço. Nos olhos uma paz angustiante de quem sabe que tem pouco tempo para viver o que havia deixado para fazer em muito mais tempo.

Ele continuava ali, sentado. A espera da próxima sessão de hemodiálise, ainda com os antebraços cheios de curativo da semana anterior. Ele não se importava.

A casa deixara para trás em busca de um vintém de esperança, tudo que havia de valor, levara na trouxa: Um cobertor, o chapéu de palha que fora de seu pai, as bolas de gude do filho enterrado, o camafeu da esposa assassinada e uma foto de família. O único lugar onde ainda deixava-se ver no espelho com a esperança de um dia conseguir voltar a sorrir como na imagem.

Atrás, a dedicatória: Ao meu querido esposo, para guardar na lembrança a família linda que somos e, se um dia não o formos mais, não deixar que os vermes da terra corroam sua carne antes do fim.

W.A.M.

Sou uma ladra



Sou Alice perdida no país das maravilhas, querendo encontrar um caminho para chegar onde desejo. Sou uma ninfa que corre em campo aberto colhendo sorrisos.

Sou um Herói que ainda não findou seus 12 trabalhos. Sou Peter Pan que não quer crescer e, mesmo assim, teima em procurar a sombra. Sou uma Górgona que transforma outrem em pedra com simples um olhar.

Forrest Gump aprendeu a contar histórias comigo, sua Sherazade. Não sou de lataria como Bumbblebee, mas posso me transformar em pouco tempo.

Sou uma poesia de Vinícius de Moraes. Estou nas palavras de Clarice Lispector.

Derrotei Minotauros, mas ainda não consegui desvendar o enigma da esfinge. Sou um centauro sagitariano: metade mulher armada, metade um cavalo selvagem.

Como sereia, atraí marinheiros e fui atraída por eles. Se ofendida, sou capaz de matar o cão de três cabeças no portão de Hades.

Sou um Alexandre com mania de grandeza, sou uma Afrodite em busca de Apolo. Sou uma fã de Beatles em tempos de NX Zero.

Sou uma atriz de teatro sem as luzes da ribalta. Sou uma Rock Star em busca da batida perfeita.Dionísio me levou à perdição.

Sou Dante Alighieri tentando reinventar uma língua. Sou um Machado de Assis que não deseja dedicar suas memórias aos vermes que corroerão sua carne.

Sou Capitú e posso te afogar na ressaca dos meus olhos. Sou Wolverine, meu poder de regeneração nunca falha.

Sou alguém que não sabe quem é e tem que apropiar-se de personagens para entender o próprio reflexo no espelho.

W.A.M.

sábado, 22 de maio de 2010

Who?

Mentir para aproximar-se de alguém é como um velho Del Rey. Pega se empurrado, mas morre na primeira esquina.
Ele é rei. Quem é você?

W.A.M.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Memórias de um cético sentimental





Desacreditei do tempo. Ele voa demais para que alguém possa senti-lo, saborea-lo, deliciar-se. Ele voa e leva o sorriso daquela amiga, o olhar de quem se gosta, o perfume que marcou. Mas ele também pára. Pára na aula chata, no trânsito... Pára na dor, no pranto. O tempo é uma agulha que vai desenhando uma história na
pele e de repente estanca. Sangra. E dói. Só ele apaga es
sa dor.

Desacreditei do espaço. Hoje pertenço a este lugar, amanhã a outro. Hoje me sinto em casa, ontem não era bem assim. Alguns têm espaço suficiente para construir uma vida, cimentar cada tijolo e uni-los. Outros levam a vida escolhendo a argamassa. Se a casa é onde mora o coração, é uma pena que os corações não batam na mesma sintonia.

Desacreditei do amor. Ele ludibria, trapaceia
, mente, mata. Ele te deixa em um êxtase quase narcótico. El
e te droga. Faz ver o ser amado em tudo, te leva à alegria excessiva. Mas você descobre que não ama o ser e sim o ideal. O ideal de alguém que se forma na mente, mas aí o príncipe não usa a cela correta e cai do cavalo, com ele o brasão da realeza se quebra e no fim você acaba descobrindo que o título era fajuto.


Desacreditei das pessoas. Elas são capazes de tudo para derrubar uns aos outros. Elas brigam, matam, roubam, vivem. Elas sentem ciúme e estragam amizades. Elas pensam possuir umas as outras quando, no fim, não possuem o próprio coração que acabará entre as minhocas da terra. Elas enganam e manipulam. E o pior! Elas crêem
no tempo, procuram seu espaço e distribuem declarações de amor antes mesmo de ter certeza do ritmo no qual bate o coração.

Desacreditei do próprio coração. Este é vítima frequente da inveja, ciúme, prepotência dos outros. E, principalmente, ele não sabe amar. É irracional.

Desacreditei do cérebro. É racional demais. Formula hipóteses e procura consequências. Tenta prevenir dos males vindouros. Ou simplesmente maquina sem parar atrás de uma forma de fazer mal a alguém.



Acreditei no tempo. Apesar de não apagar as cicatrizes, apaga a dor.
Acreditei no espaço. Um dia se acha o lugar onde se pertence.
Acreditei no amor. Há várias formas de amar. O carnal pode ser efêmero, mas é intenso.
Acreditei no coração. Não é pecado amar. Pecado é ter medo de ser amado.
Acreditei no cérebro. Evita dores e articula a vida.

Não me peça pra acreditar nas pessoas.

W.A.M.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Sad tree friends





É fácil podar uma árvore. Não custa nada elevar a tesoura e cortar fora seus galhos cultivados por uma vida inteira. Só que quando eles se vão, vão embora também sua história, seu passado, seus traços mais marcantes.

Esses são sua vida expressada em lascas tiradas, em corações desenhados, em migalhas de piquenique deixadas, em restos de ninhos construídos por seus mais fiéis companheiros. Os galhos falam.

É fácil fazer uma árvore perder seu formato. Mais fácil ainda é fazer isso sem perguntar se ela quer sair de si.

Só que a essência fica. Uma mangueira continuará produzindo manga, afinal os galhos crescerão e novas histórias desenhar-se-ão. É um cicl
o interminável.

É fácil podar uma árvore. O difícil é conviver com as folhas secas que caem dela no outono.




W.A.M.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Nela

Ele não conseguia abrir seu coração pra ela. Sem mais explicações, fechou os olhos para a verdade.
Os olhos ficam na cabeça e esta não se dava bem com o coração.
O sentimento doía, mas doía na terceira pessoa.

W.A.M.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Andava tão a flor da pele...

A relva estava mais verde naquela manhã ensolarada. Parecia um presente da primavera que mal chegava. O prisma pendurado na janela a acordou reluzindo todas as cores de mais um dia no pequeno vilarejo.
A menina correu pelo campo até as derradeiras árvores. Sentia a necessidade de aspirar cada segundo daquele ar que de tão puro, revigorava. O vestido florido balançava ao sabor do vento que tornava-se mais forte a medida que ela corria.
De repente, parou. Freou bruscamente e ali, frígida, entendeu o motivo do sobressalto impulsivo. Havia mais para além do campo do que aqueles pomares com suculentos frutos. Havia o roseiral. E bem no centro, uma rara rosa destoava das outras pálidas e rubras. Não era escarlate, mas também nem de longe parecia branca. Era cor-de-rosa. Como em uma mistura das rosas majoritárias, aquela era a personificação do amor.
Apressou-se para tocá-la. Bonita, mas não era macia e sim áspera, porém essa aspereza não incomodava. Ela emanava uma sensação inigualável de carinho. Como poderia uma pequena flor passar um sentimento tão bom para aquela menina tão pequena?
Não hesitou! Arrancou a celebérrima do meio das outras com as pontas dos dedos. Mas não se sentiu melhor e notou que aquilo não lhe pertencia. Constatou que aquele seria um magnífico presente para pessoas especiais. Mas como dá-la a todos que amava se só havia uma?
Não importava. Carregando a flor, saiu esvoaçando o vestido pela relva. Tropeçou algumas vezes, mas continuou a correr. Encontrou então o que queria, aquilo pelo que mais prezava: seu amigos. Sem titubear, a garotinha foi arrancando da raridade que tinha em mãos pétala por pétala e entregando cada uma a um amigo diferente. Assim foi até a última. Restou-lhe o cabo.
As outras crianças pareciam felizes com suas amostras de afeto sincero. Deliciavam-se com a força emanada pelas pétalas cor-de-rosa, mas algo chamou-lhes atenção. A relva ficara vermelha, assim como a menina. A menina da rosa sangrava. Dara todo o afeto existente na flor e não notou que havia espinhos.
O vestido florido ficou escarlate. A pele alva, rubra. Os olhos sadios, pálidos. Ela conseguiria conviver com a dor daqueles espinhos em suas pequenas mãos, mas as pétalas nunca voltariam a se unir.

W.A.M.